23 October 2008

Cronicando

“O que eu tenho, doutor? Você está com uma doença crônica, sinto muito”. Não. O assunto não é esse tipo de “cronicidade”. A crônica em questão é aquele texto leve e curto, sobre um fato cotidiano e que se lê no jornal. Ou então em um livro que traz uma coletânea desses textos. É o caso de Ungáua!, o recém lançado volume que reúne 101 crônicas de Ruy Castro, publicadas na Folha de São Paulo entre fevereiro de 2007 e março de 2008. E não é só o nome dado a obra que intriga em Ruy. Sua visão jornalística e sobre o gênero crônica também é bastante particular.

Comecemos pelo nome curioso “Ungáua”. É o que o Tarzan, interpretado por Johnny Weissmuller no cinema, dizia ao macaco, ao elefante e aos outros bichos quando queria lhes dar alguma ordem. “Falava apenas ‘Ungáua!’ e o bicho entendia imediatamente o que tinha de fazer”, explica Ruy. Talvez essa seja uma analogia com a espontaneidade e a fácil compreensão da crônica. Mas escrevê-la é bem mais complexo do que parece.

A crônica exige um grande exercício de observação e síntese. “Me obriga a ficar atento ao que está se passando, o que é bom, porque tendo a ser meio desligado à vida real”, diz Ruy. O cronista leva cerca de duas horas para escrever aqueles 1777 caracteres para a Folha, incluindo todas as mudanças feitas no texto mesmo depois de “pronto”. Ruy conta ainda que quando começa uma crônica só tem uma idéia vaga do assunto, ele vai tomando forma à medida que escreve.

Mas não só redigir essa criaturinha é difícil. Defini-la também o é: afinal, o que é uma crônica? A professora de português e cronista Regina Carvalho diz que a característica principal do gênero é justamente não ter característica nenhuma: tudo pode ser crônica. “A única definição possível é a de que ela é um texto literário para jornal”, afirma. E assim, como texto literário tem toda a liberdade de linguagem, estilo, temática. As limitações lhe vêm impostas pela publicação. Ruy, por sua vez, define a crônica como um comentário bem escrito, que leva em conta os mandamentos imutáveis do jornal: o quê, como, quem, quando, onde.

O cronista brinca que sua inspiração para escrever vem do horário de fechamento do jornal e que o cenário carioca é quase sempre um bom ponto de partida, mas não é o único. Ele explica que em Ungáua! há poucas crônicas que se passam no Rio, mas a maneira de ver o mundo, esta sim, é sempre carioca. “Todos aqueles cronistas capixabas (Rubem Braga, Carlinhos Oliveira), mineiros (Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos), pernambucanos (Nelson Rodrigues) e até paulistas (Elsie Lessa) só se tornaram cronistas no Rio. Só uma metrópole em que se possa andar a pé fornece material para crônica”, acrescenta Ruy.

Aqui entra em questão também a brasilidade da crônica. Para o cronista carioca, não há dúvidas de que esse é um gênero tipicamente brasileiro. A professora Regina discorda. Ela ressalta que há crônicas em outros países, com características diferenciadas. Cita como exemplo o Uruguai e seu popular escritor Eduardo Galeano. Ficou famoso não só por sua obra As veias abertas da América Latina, mas também por seus livros de crônicas, como Bocas do Tempo, publicado em português. “Brasileiro precisa parar com essa megalomania disfarçada de complexo de inferioridade, achando que tudo é melhor no Brasil, ou só existe aqui, poxa!”, opina Regina. Segundo ela, o que houve no Brasil é que a crônica atingiu uma popularidade muito grande.

E por falar em popularidade, Ruy Castro considera que um romancista tende a ser bem mais valorizado que um cronista por o romance ser coisa muito mais séria, que dá muito mais trabalho. Ele mesmo foi consagrado por seus livros de reconstituição histórica e biografias. Regina, entretanto, cita o romancista Cristovão Tezza com sua fala de que todos amam um cronista e ninguém conhece um romancista. “E olhem que o Tezza tem renome nacional! Mas o que se pode esperar num universo em que se lê pouco?”, diz a professora. Ela afirma não saber se as pessoas lêem o jornal, mas ter certeza de que as crônicas elas lêem.

Regina acredita que a crônica deve falar do cotidiano com leveza e humor. Mas deve também bronquear quando preciso, porque há coisas que revoltam até o cronista mais bem-humorado do mundo. A professora diz que o crítico Antônio Candido afirma ser o grande mérito da crônica fazer a literatura descer dos altos píncaros em que costuma se encastelar para a altura do leitor comum. E Regina destaca a importância desse trazer um pouco de beleza e reflexão para a vida das pessoas, de uma forma que elas possam assimilar e ter prazer com isso. Sem rodeios, Ruy Castro diz que uma boa crônica deve ser simplesmente interessante de ler.

Texto publicado na Semana Revista,
da VII Semana de Jornalismo da UFSC,
e no Observatório da Imprensa,
em 2 de setembro de 2008

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