10 November 2009

Num doce balanço a caminho do Gran Canale


Ativou o alarme da loja, trancou a porta de vidro e despediu-se da colega. A alguns metros dali, passados um canal e uma ponte, ficava o caixa eletrônico. Olhou ao redor antes de tirar da bolsa a caixa plástica com o dinheiro faturado no dia e depositá-la na máquina. Viu apenas um casal de mãos dadas que caminhava em direção à praça San Marco. A jovem foi para o lado contrário, dobrando as esquinas da rua estreita e repleta de vidros de Murano reluzentes por trás das vitrines. Deu de frente para a Ponte de Rialto, mas decidiu voltar para casa pelo caminho mais curto. Naquela noite de maio, às 22h, havia escurecido há pouco e a temperatura era agradável. Alguns turistas ainda caminhavam pela cidade, mas, em certas ruelas, escutava apenas os próprios passos e o balançar da água.

Passou pelo pequeno Campo San Luca e pelos Campos San Angelo e Santo Stefano. Estava morrendo de vontade de um sorvete de tiramissú, mas já estavam fechando a gelateria. Logo depois da curva onde ficava uma floricultura, via-se o pé da Ponte da Accademia, grande estrutura de metal e madeira que cruza o Canal Grande. Foi quando ouviu uma música e, poucos segundos depois, sorriu por dentro. Eram as inconfundíveis notas dissonantes da Bossa Nova. Naquela noite quente, de vestido de alcinha florido, cercada por palácios bizantinos e gondoleiros, a melodia de Garota de Ipanema parecia deixar tudo ainda mais perfeito.

“Moço esta música é do meu país. Eu sou brasileira.”
“Não me diga. Que coisa maravilhosa”, respondeu o violonista.
“Sim, eu adoro Garota de Ipanema.”
“Então eu vou tocar só para você cantar.”
“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...”

Antes do intercâmbio, a expectativa era tão grande que a garota nem pensava em sentir saudades de seu país. Nas férias, lia quase todos os dias sobre Veneza, correspondia-se com um estudante brasileiro que já vivia na cidade há seis meses e pesquisava lugares para morar. Sobre a escrivaninha, empilhavam-se uma gramática e um dicionário de italiano e o livro La rabbia e l’orgoglio, da jornalista Oriana Fallaci. Havia estudado o idioma por apenas dois semestres e, por isso, esforçava-se para aprender mais um pouco por conta própria. Naquele fevereiro, se pensasse em alguma música que a emocionaria na romântica Veneza, seria Oh sole mio cantada por um gondoleiro, e jamais o doce balanço de Tom Jobim.

“...o mundo inteirinho se enche de graça e fica mais lindo por causa do amor, por causa do amor...”
“Bravissima! Arrivederci, bella! Una buona vita per te!”

O italiano - cabelos grisalhos amarrados em rabo de cavalo e colarinho da camisa aberto com os pelos do peito à mostra - beijou-lhe a mão. Com os olhos úmidos, a moça subiu os degraus. Era como se a ponte separasse seus dois amores: de um lado do canal, o Brasil e, do outro, a Itália.

22 August 2009

Intercâmbio para a Amazônia

As turbinas são ligadas, a orla de Santarém se afasta e logo uma linha invisível divide a água mais clara da barrenta. É o fim do Tapajós e o início do Amazonas, o maior rio do mundo em volume d'água. Após duas horas e meia vendo apenas floresta e vez ou outra uma casa de palafitas, avistamos ao longe um monte em meio à planície. Mais uma hora e entramos no Gurupatuba, em cujas margens está uma cidade colorida: Monte Alegre. Sob um sol de rachar, crianças se atiram no rio para fugir do calor. Ao fundo, o tecnobrega paraense – mistura de lambada e forró, cantada por uma voz esganiçada em ritmo frenético. Tudo mais ou menos como o imaginado. Só faltou a festa de recepção para os rondonistas.

Por sorte, houve apenas um mal-entendido quanto ao horário de chegada e não foi tão ruim ficar esperando ali na estação hidroviária, contemplando o lugar, o rio, as pessoas. Alguns de nós se arriscaram de cara na condução mais utilizada por ali: o motototáxi. A viagem custa de um a dois reais e o uso de capacetes está fora de cogitação. “Quando alguém tá de capacete, é aí que a polícia para, porque sabe que a pessoa é de fora”, relatou um dos mototaxistas. Preferi o microônibus escolar enviado pela prefeitura, que nos acompanharia até o fim dos trabalhos.

Em janeiro deste ano, embarquei com outros cinco estudantes e dois professores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em uma viagem que mudaria minha percepção de Brasil e de Amazônia. De sua criação, em 1967 até ser extinto em 1989, o Projeto Rondon envolveu mais de 350 mil jovens. Quatorze anos depois, em 2003, a União Nacional dos Estudantes (UNE) encaminhou ao Governo Federal uma proposta de reativação. Com colaboração do MEC e coordenação do Ministério da Defesa, Lula relançou o Rondon em 2005 e, desde então, nove equipes da UFSC participaram.

Aquecimento
Para chegar ao nosso destino final, Monte Alegre, havíamos feito antes duas paradas. Até São Paulo, as passagens foram pagas pela UFSC. Dormimos uma noite no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) de São Paulo, localizado no antigo Solar dos Andradas, em Santana. “Foi aqui que José Bonifácio escreveu o documento exigindo o “Fico” de D. Pedro”, contou o tenente Fernando Passarelli. Como manda a disciplina militar, acordamos de madrugada para seguir viagem. Dos 160 rondonistas escalados para o Pará, fizemos parte dos seletos 32 que voaram no jato Condor 99-A da Força Aérea. Ficou a curiosidade de passar cinco horas sentada no chão do barulhento e camuflado Hércules.

Um catarinense nos aguardava em Santarém, nosso “anjo” Huelinton Zanelato, o militar encarregado de zelar pela equipe durante todo o Projeto. No 8º Batalhão de Engenharia de Construção, circundado pela floresta de cacaueiros e saguis, a placa indicava as distâncias: 3922 km de São Paulo; 4630 de Florianópolis. Uma das camas dos triliches do alojamento feminino tinha uma etiqueta com meu nome e universidade. Sobre ela, uma carta de boas-vindas do Ministério da Defesa endereçada a Excelentíssima Sra. Luisa Frey.

Recebemos nosso kit Rondon – mochila, chapéu e quatro camisetas com os dizeres “Lição de vida e de cidadania” – e fomos ver a formatura dos oficiais. Um espetáculo de patriotismo, com hino nacional, discurso do coronel e até cobertura da TV Tapajós. Ali, os 160 rondonistas de verde assistimos aos jovens militares proclamando a Oração do Guerreiro de Selva, que termina: “Mas se defendendo esta brasileira Amazônia/ Tivermos que perecer, ó Deus/ Que façamos com dignidade/E mereçamos a vitória/ Selva!”.

Jantar, baile, banquete de café da manhã, solenidade de abertura do Projeto e palestra de sobrevivência na selva depois, finalmente partimos na manhã de domingo com o barco da Marinha.

- Patrulhamos 21 municípios, de Trombetas a Prainha. – disse o carioca Rubens Guanabara, 1º Sargento que navega no Amazonas há três anos.

- Isso dá quanto em km?

- São 330 mil km², para apenas 24 militares que se revezam.

Monte Alegre

Seis horas da manhã e alguém bate na porta. “ Vocês não querem ver o nascer do sol?”, perguntou o professor Clóvis. Na varanda ao redor da casa, sentamos no b a nc o de madeira, sentindo o ar que, a essa hora, ainda era fresco. Do alto do morro se vê o Gurupatuba, o sol se erguendo atrás do Amazonas no horizonte. Quando chega o fim de tarde, na árvore ali e m frente repousam dezenas de garças brancas, contrastando com o céu alaranjado. É exatamente neste ponto privilegiado que está localizado o Hotel da Comissão de Aeroportos da Região Amazônia (Comara), onde, junto com a outra equipe enviada à cidade, da Universidade d e Marília, passamos nossos 12 dias de Monte Alegre.

Nós éramos três estudantes do Jornalismo, dois da Medicina e uma do Serviço Social. Além do Professor Clóvis Geyer, o também jornalista Sérgio Mattos coordenou o grupo. Tínhamos de 26 de janeiro a 6 de fevereiro para desenvolver o que planejamos nas áreas de comunicação, meio-ambiente, tecnologia, produção e trabalho. Mas, para realizar tudo isso, dependíamos da prefeitura, que, responsável por o transporte, a alimentação e o alojamento dos rondonistas na cidade, determinaria conosco onde e como as ações seriam feitas. Com o prefeito, Jardel Vasconcelos (PMDB), não tivemos nenhum contato; lidamos apenas com a vice, Aldenora Coutinho.

Assim como a vista do hotel, a estrutura da cidade surpreendeu. O centro tem luz elétrica, água encanada e até internet na lan house da praça. “Pensei que fossemos para um município extremamente carente”, disse a colega de equipe Daiana Hackbarth, do Serviço Social. Mas somente 20 dos 60 mil habitantes moram na área urbana. Os outros 40 mil pinta-cuias - como são chamados os montalegrenses - vivem em cerca de 300 comunidades rurais, algumas bem afastadas. A área do município é de quase 22 mil km². São Paulo tem 1.523 km²; Florianópolis, 433 km².

Quase tudo o que havíamos previsto teve de ser readaptado a essa realidade e o primeiro dia foi só de planejamento. Tivemos reunião com as lideranças locais na Escola Municipal Orlando Costa, com direito ao hino cantado em coro: “Saberemos levar-te pra frente/ Monte Alegre, com força viril/ Confirmando o valor de tua gente/Que te quer integrado ao Brasil”. Depois, conseguimos negociar com a prefeitura para que atuássemos nas comunidades e não apenas na área central.Ali, nos arredores da igreja da matriz e da sorveteria dos sabores diferentes – buriti, cupuaçu, tapioca -, por onde passávamos logo se escutava um “Boa tarde” saindo de algum canto. Quando nos apresentávamos, todos já sabiam quem éramos. Isso porque não existe quem não ouça a rádio Mirante, onde, depois da reunião, nós rondonistas demos entrevista e fomos pauta nos dias que se seguiram.

Atuar para não entregar
Desde sua criação, em plena ditadura, o Projeto Rondon tem como objetivo aproximar universitários à realidade do país. Foi após a primeira operação - com duração de 28 dias, no interior da Amazônia – que os estudantes deram o nome em homenagem ao Marechal Cândido Rondon e voltaram com o lema “integrar para não entregar”. Nós queríamos atuar para não entregar e, no quinto dia de Projeto, conseguimos começar as ações.

A rua é de terra, mas a creche é novinha, recém-construída. Vinte pequenos rostos nos aguardam, sentados nas mesas dispostas em “U”. Ali, na Comunidade Planalto, a poucos minutos do centro, demos início à atividade “Realidade contada por desenhos”. A ideia era incentivar o registro de elementos do cotidiano como forma de valorizar a própria cultura. “Eu venho de muito longe, viajei três dias para chegar aqui. Não sei que frutas se comem, que bichos se veem por aqui”, provocamos as crianças. Logo os papéis se coloriram de giz de cera e, a partir dos desenhos, gravamos os depoimentos sobre botos, pirarucus e cupuaçus para, depois, produzir um audiovisual.

Enquanto isso, a equipe teve de se dividir, pois não contávamos com a presença de cerca de 50 professores que nos esperavam, ávidos por informação. No improviso, saiu uma roda de bate-papo e os docentes expuseram, com a esperança de que pudéssemos ajudar, suas dificuldades em sala de aula. A principal é a das turmas multiseriais. “Quando o bairro é pequeno e não tem uma escola pólo da região, o professor é responsável por uma classe com alunos de todas as séries, de três a 20 anos”, relatou uma das professoras.

Ao escrevermos a programação da semana na lousa, começou o burburinho. Criou-se grande expectativa em torno das palestras - sobre participação da família nas atividades escolares, como trabalhar com jovens, educação inclusiva e saúde - e das oficinas de rádio e jornal-mural. “O título do nosso jornal será Pinta-Cuia”, propôs uma das equipes de professores; “podemos fazer uma reportagem sobre a pesca predatória em Monte Alegre”, sugeriu outra.As ações chegaram a reunir mais de 90 professores, que superlotaram uma sala da Orlando Costa. Ao final de uma oficina, uma senhora nos agradeceu com os olhos brilhando. “Será que vocês não poderiam ir um dia à minha comunidade, Samaúma? Ela é bem carente”, pediu um professor de pele cabocla e olhos azuis. Depois, descobrimos que para chegar a Samaúma, se pega ônibus, barco e o último trecho é a pé. A vice-prefeita disse que seria inviável.

Na “Realidade contada por desenhos”, trabalhamos com 150 crianças. Nas manhãs seguintes àquela de Planalto, visitamos outras cinco comunidades. Na ribeirinha do Curitanfã, não há escolas, apenas a creche Cinderela. As casas são de palafita, algumas inacabadas. Sem paredes, o lar se resume a um tablado de madeira e um telhado sobre estacas. “A maioria das famílias é de pescadores, com uma renda média de R$250,00”, afirmou Rose Figueiredo, proprietária da única escola particular de Monte Alegre, que planejava conceder bolsas de estudos a 250 crianças do Curitanfã. Na Cinderela, não vimos desenhos de abóboras e princesas, mas de barcos, peixes e da bandeira do Pará.

No ginásio do bairro Curaxi, 47 crianças, de 2 a 16 anos, desenhavam no chão da quadra e, ao lado, 12 guardas mirins aprendiam a aplicar um teste de visão. A atividade fez parte da ação “Professor Nota 10”, que capacitou 200 professores e agentes de saúde. “Se algum problema for identificado, a criança deve ser colocada à frente da sala de aula e encaminhada ao médico”, explicava Alexandre Casagrande da Medicina. Basta apontar para o cartaz e perguntar que direção as perninhas da letra “E” indicam. “Faremos em todos os alunos quando voltarem das férias”, garantiu a professora Leonor Melo, da Escola Dátis Lima d’Oliva, localizada na comunidade na Colônia Agrícola do Norte do Pará (Canp).

Na Canp, começou nosso contato mais rico com a população, durante as visitas domiciliares para esclarecer dúvidas sobre programas do governo. Uma das paradas foi na casa de Xavier dos Santos de 71 anos. Passado o primeiro cômodo, onde panelas de alumínio brilhavam na parede, encontramos a senhora de cabelos grisalhos deitada sobre o lado esquerdo do corpo. Ele estava paralisado há dois dias, quando havia sofrido um AVC. “A banda que adormeceu num quer acordar e a que tá acordada num quer morrer”, brincou. Emocionou-se com a nossa presença e deixou escapar algumas lágrimas.

Nas visitas, descobrimos que a maioria das famílias recebia ou estava na fila para receber o Bolsa-Família. Elaboramos e disponibilizamos para a prefeitura uma cartilha com todos os serviços de direito dos cidadãos. Além disso, a partir das dúvidas da população, produzimos 15 programetes de rádio das séries “Doutor Sushi responde” e “Minuto Cidadão”: “Meu filho tem 15 anos, ele pode participar do pró-jovem?/ O que a gente faz quando a criança tem diarréia?”. O material ficou à disposição das emissoras locais para inserção na programação.

Nossas noites foram dedicadas às rádios Mirante FM e Comunitária Gurupatuba, à TV Ponta Negra e ao Jornal Tribuna da Calha Norte. Ministramos, estudantes e professores de Jornalismo, um seminário de atualização para 33 profissionais. Todos ali - do polêmico “Sibiê”, locutor do Patrulhão, ao sério Genival Cardoso, proprietário do Tribuna da Calha Norte - atuam como comunicadores, mas não possuem formação superior na área. “Eu tenho voz boa e tinha feito uma oficina de rádio. Daí a Mirante me contratou”, contou Nélio Magalhães. Ao menino Anderson, quatro anos, que acompanhava o pai jornalista, dei papel e caneta para distraí-lo.

- O que você desenhou aí?

- Uma moto.

- E o que é isso? – apontei para os vários círculos, um em cima do outro.

- O pai, a mãe e o filho na moto – respondeu. Há quase 3 mil motos em Monte Alegre e quanto mais gente andar na mesma, melhor. Tem gente que diz já ter visto sete pessoas sobre as duas rodas.

As reuniões renderam discussões em torno de técnicas de redação e ética. Rimos com os casos relatados, como o de Herto Miranda, que cobriu reportagens de bicicleta. O sucesso do seminário foi tanto que o ampliamos de três para seis encontros.

Hora de puxar o barco
Não poderíamos deixar Monte Alegre sem conhecer a Serra da Lua e suas inscrições rupestres de mais de 11 mil anos, uma das marcas mais antigas da presença humana na América. Em nossa última tarde, o guia foi Nelsi Sadeck, o engenheiro que, de tão interessado no Rondon, participou do seminário de comunicação e acabou nos “adotando”. Quando seu Nelsi ri, é impossível não rir também. “Boralá subir a pedra”, chamou. Círculos vermelhos e laranjas formam a lua; mais adiante, uma mulher grávida. Ainda subimos a Serra do Ererê e, a 284 m do chão, olhamos para os lados e tudo o que se via era água e o verde da planície Amazônica.

“O Rondon faz com que os alunos amadureçam e ampliem seu olhar cidadão”, costuma dizer o professor Sérgio. Nós voltamos contentes, mas com a sensação de impotência e frustração com o que poderia ter sido feito com mais tempo, de permanência e preparação. Naquela manhã de sexta-feira, a Marinha veio nos buscar. A bandeira do Brasil flamejava na proa do barco e Monte Alegre ficava cada vez mais distante na imensidão do Amazonas.

16 April 2009

Dó, um dia, um lindo dia

“Uma família de cantores, é genial! A Áustria precisa disso... E em primeiro lugar no Festival de Música de Salzburg: os Von Trapp!” Quem imaginaria que tais frases estariam entre as finais pronunciadas por alguém? O ator Francarlos Reis teve essa sorte. Interpretou o Tio Max de A Noviça Rebelde pela última vez no domingo, 5 de abril. Três dias depois, sofreu um infarto e morreu enquanto dormia.

Nascido em 1941, o piracicabano tornou-se este ano um austríaco de sobrenome quase impronunciável para nós brasileiros: Detweiler. Mas só o nome do personagem é assim duro. Tio Max é um amigo dos Von Trapp, um bon vivant que gosta de viver rodeado de gente rica. Em busca de sucesso, convence o capitão a deixar que ele inscreva seus filhos para cantarem no Festival de Salzburg. O pai e sua nova esposa, a ex-noviça Maria, acabam participando da apresentação, que distrai os soldados alemães e permite a fuga dos Von Trapp. “No fim, Max se redime da futilidade e salva a família dos nazistas”, disse o próprio Francarlos.

No final da carreira de quase 40 anos e 69 peças, o ator não se redimiu como Tio Max, mas se rendeu. Rendeu-se aos musicais. Os cinco primeiros trabalhos de Francarlos foram do gênero, começando por Hair, em 1970. Seguiu como ator e diretor de teatro e atuou também na TV e no cinema. Só em 2007, voltou a fazer algo que adorava: cantar e dançar. Integrou o elenco de My Fair Lady, West Side Story e da versão paulistana de A Noviça Rebelde.

A peça ficou em cartaz por nove meses no Rio e teve mais de 190 mil espectadores. O sucesso vem se repetindo desde a estréia em São Paulo, no dia 20 de março. As músicas cantaroladas por Maria sobre as colinas austríacas conquistam o público desde 1959, nos palcos da Broadway, e 1966, nas telas. “Dó, um dia, um lindo dia/ Ré, eu ando para trás” ainda diverte os pequenos e “Edelweiss”, na voz grave do capitão Von Trapp, emociona os mais antigos. E o Tio Max de Francarlos fez rir a todos.

Canções e romantismo à parte, no mundo capitalista, a morte de um dos atores não pode parar uma superprodução de 10 milhões de reais. The show must go on e, no dia seguinte ao falecimento, as crianças Von Trapp já tinham outro Tio Max: o substituto Dudu Sandroni.

Apesar de dramático, um fim como este não é nada triste, mas sim, a sorte que qualquer mortal deseja. Um lindo dia, Francarlos Reis morreu; sem sofrimento e fazendo o que mais gostava. “So long, adeus, Auf wiedersehn, good bye.”

19 March 2009

Flashes de Monte Alegre

O trabalho dos rondonistas da UFSC em Monte Alegre, Pará, durou de 27 de janeiro a 6 de fevereiro. Dez dias parece pouco para conhecer bem uma cidade em que 40 dos seus 60 mil habitantes vivem em comunidades rurais afastadas. Mas, de casa em casa, foram deixadas marcas, como a de Maria Davina, Elenilson e Dona Xavier.

Dia 31, sábado, moradores da comunidade Airi demonstrariam aos rondonistas seu tradicional folião realizado em junho, na festividade de São João Batista. Mas no Airi, para ir de uma casa a outra, são quilômetros de terra, daquela bem vermelha.
Para que não caminhassem no sol e na poeira, o ônibus da prefeitura buscou os músicos, na beira da estrada ou em casa.

Uma das paradas, foi na residência de Maria Davina da Silva. Aos 69 anos, rugas bem marcadas na pele negra e alguns dentes faltando, a aposentada sempre viveu da roça. Mãe de 10 filhos, oito vivos, Maria mora com quatro deles. No quintal de terra batida, a família conversa e um panelão cozinha a galinhada. Maria nos dá a mão e diz: “Boralá sentar pra cumê cum a gente?”.

Na casa de madeira, pela porta aberta se vêem em frente à TV três dos sete netos que moram com a avó. Na testa de Edmilson - o mais novo - bem acima dos olhos de caboclo levemente puxados, de um lado se vê um arranhão, do outro, uma mosca insiste em pousar. Fora da casa, o irmão Elenilson, 11 anos, brinca de futebol. Garrafas de vidro são as traves e frascos de esmalte e shampoo, os jogadores, que "chutam" uma bolinha. “Peguei as coisas pela casa ou iam pro lixo. Às vezes meus irmão jogam, mas num ligo de jogar sozinho.”

Outra comunidade visitada, em 2 de fevereiro, foi a Canp. Lá vive Xavier dos Santos, 2 anos mais velha que Maria Davina. Passado o primeiro cômodo, onde panelas de alumínio brilham na parede, Dona Xavier está deitada sobre o lado esquerdo do corpo. Todo ele está paralisado há dois dias, quando sofreu um AVC. Xavier se emociona com a conversa e deixa escapar uma lágrima. “A banda que adormeceu num quer acordar e a que tá acordada num quer morrer”, diz aquela que, mesmo triste, não deixa de fazer piada.

16 February 2009

Pequenos pinta-cuias

Crianças que marcaram o Projeto Rondon, em Monte Alegre, Pará.


Anderson, 4 anos: foi com o pai no primeiro dia do curso de atualização para jornalistas. Dei a ele folhas do meu bloco e caneta. Saiu o desenho de uma moto com várias cabeças, uma sobre a outra: o pai, a mãe, o filho, todos no mesmo veículo. Perguntou por que meu cabelo era dessa cor e quando eu disse que era loira: “Onde você pintou?”.


Monique, 6 anos, Comunidade Planalto: mulata, cabelos trançados, pinta sobre a boca. Cópia idêntica da mãe - professora da creche.


Fabiana, 10 anos, Comunidade Curitanfã: desenhou a bandeira do Pará (muitas crianças a desenharam ao longo dos dias, todos parecem conhecê-la bem). Disse que gostou muito de mim. Queria que eu não fosse embora e que fosse dar um passeio no bairro com ela.


Ranielson, 10 anos, Comunidade Curitanfã: no final da manhã, a Joana perguntou a ele o que tinha visto de diferente naquele dia. Pensou um pouco, apontou pra mim e disse: “Ela”.


Camila, 3 anos, Comunidade Curitanfã: morena de cachinhos. Veio toda arrumada, de saia jeans e presilhas no cabelo. Bem calma, ficou um bom tempo no meu colo. Talita tirou fotos lindas.


Frederico, 2 anos, Comunidade Curuxi: loirinho dos cachinhos – uma raridade por aqui! Estava só de bermuda e chegou ao ginásio com seus vários irmãos. Não parava de pular.


Monique, 11 anos, Comunidade Airi: Sabia onde fica Santa Catarina no mapa e algumas coisas em inglês. Disse que eu parecia com a Dulce Maria – cantora do Rebelde – por causa do meu sorriso (ela é morena!). Detalhe que a Monique queimou os CDs do grupo porque disseram pra ela que eles têm pacto com o diabo. Andou de bicicleta, tirou fotos com o celular e nos levou para molhar o pé no igarapé.


Elenilson, 11 anos, Comunidade Airi: brincava de futebol no quintal. Garrafas de vidro eram as traves e frascos de esmalte, shampoo e perfume, os jogadores, que "chutavam" uma bolinha de ping-pong.


Giovana, 6 anos, filha da Márcia – cozinheira da Comara: ficou feliz quando a Ju e eu a deixamos mexer no computador pela primeira vez. Digitou seu nome, o da mãe e das amiguinhas. Chupou mangas com a gente, presente do caseiro Benonir.

01 February 2009

Calor é pouco

A algumas centenas de quilômetros do Equador, Monte Alegre não poderia deixar de ser quente. Alguns rondonistas dizem que esperavam mais calor. Mas, para mim, a temperatura está de bom tamanho. Suamos o tempo todo, principalmente em uma tarde com o sol ardente que já anunciava uma tempestade ou dançando tecnobrega na boate La Barca. Tomamos três banhos gelados por dia, dos quais já saímos pingando de suor outra vez. Mas não é só esse tipo de calor que sentimos por aqui. Nunca vi uma gente tão hospitaleira, bem-humorada e orgulhosa de sua cidade.

Foi impressionante ver e ouvir, na reunião de abertura do projeto, todos cantando com gosto o hino montealegrense. A letra fala de um clima suave e ameno, um pouco contraditório com a realidade local. As pessoas aqui são mais do que calorosas. Adriana, da sorveteria, nos recebe com um sorriso todos os dias e nos faz feliz ao anunciar um sabor novo: cupuaçu, buriti, tapioca, castanha... Dona Claudete, do restaurante Sabor e Cheiro da Amazônia, diz que é um privilégio essa troca com gente de fora e nos ensinou a fazer bolinho de Piracuí (farinha feita do peixe Acari seco). Aliás, hoje fomos convidados para a sua despedida no almoço.

No banquete, servido na paróquia, estavam também a secretária Conceição e o engenheiro Nelsí, que de tão interessados em ter contato com os rondonistas deram um jeito de participar de nosso curso de atualização para jornalistas, mesmo nada tendo a ver com a área. Seu Nelsí se ofereceu para levar-nos como guia à Serra da Lua, onde se vêem as famosas inscrições rupestres da cidade. Conceição nos prometeu tapioca com leite condensado para a merenda da noite de segunda-feira, quando daremos continuidade ao curso.

Somos sempre recebidos com sorrisos e curiosidade. Por onde passam os rondonistas, logo se escuta um "Boa tarde" saindo de algum canto. Quando nos apresentamos, todos já sabem quem somos. Isso porque aqui não existe quem não ouça a rádio Mirante, onde demos entrevista e somos sempre pauta. Na loja de doces, a moça fez questão de não me deixar pagar quando pedi duas balas. Na papelaria onde compramos papel para nossas ações, os funcionários quiseram saber sobre a finalidade do Projeto Rondon e nos deram as boas-vindas. Depois das oficinas, os professores vêm nos agradecer com os olhos brilhando. As crianças, que se divertem quando contamos que nunca tínhamos comido cupuaçu ou visto um boto, nos abraçam, beijam e nos acham a coisa mais linda do mundo.

Seu Nelsí nos contou hoje que não existe fome por aqui. Mesmo nas comunidades mais carentes, quando alguém passa por dificuldades os vizinhos ajudam. "Se não têm condições, pedem para os outros ajudarem", conta. Ele diz que que quando alguém pede uma esmola e ele vê que a pessoa está realmente precisando, vai ao supermercado e compra farinha, leite, feijão, 1 kg de carne. Em meia horinha no supermercado, faz a sua parte.

Talvez fosse bom que um pouco desse calor soprasse para o sul do Brasil (sem o suadouro, é claro!). De fato, como disse nossa rondonista Ju Sakae, é fácil entender porque esse Monte se chama Alegre.


PS: Mais um pouco de calor ontem à noite: tivemos um show particular do grupo Suingue Show. Na varanda do nosso hotel, bailarinos e bailarinas rebolaram freneticamente em suas roupas e movimentos sensuais ao som de tecnobrega. Depois, ainda nos ensinaram alguns passos. Divertidíssimo!