22 August 2009

Intercâmbio para a Amazônia

As turbinas são ligadas, a orla de Santarém se afasta e logo uma linha invisível divide a água mais clara da barrenta. É o fim do Tapajós e o início do Amazonas, o maior rio do mundo em volume d'água. Após duas horas e meia vendo apenas floresta e vez ou outra uma casa de palafitas, avistamos ao longe um monte em meio à planície. Mais uma hora e entramos no Gurupatuba, em cujas margens está uma cidade colorida: Monte Alegre. Sob um sol de rachar, crianças se atiram no rio para fugir do calor. Ao fundo, o tecnobrega paraense – mistura de lambada e forró, cantada por uma voz esganiçada em ritmo frenético. Tudo mais ou menos como o imaginado. Só faltou a festa de recepção para os rondonistas.

Por sorte, houve apenas um mal-entendido quanto ao horário de chegada e não foi tão ruim ficar esperando ali na estação hidroviária, contemplando o lugar, o rio, as pessoas. Alguns de nós se arriscaram de cara na condução mais utilizada por ali: o motototáxi. A viagem custa de um a dois reais e o uso de capacetes está fora de cogitação. “Quando alguém tá de capacete, é aí que a polícia para, porque sabe que a pessoa é de fora”, relatou um dos mototaxistas. Preferi o microônibus escolar enviado pela prefeitura, que nos acompanharia até o fim dos trabalhos.

Em janeiro deste ano, embarquei com outros cinco estudantes e dois professores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em uma viagem que mudaria minha percepção de Brasil e de Amazônia. De sua criação, em 1967 até ser extinto em 1989, o Projeto Rondon envolveu mais de 350 mil jovens. Quatorze anos depois, em 2003, a União Nacional dos Estudantes (UNE) encaminhou ao Governo Federal uma proposta de reativação. Com colaboração do MEC e coordenação do Ministério da Defesa, Lula relançou o Rondon em 2005 e, desde então, nove equipes da UFSC participaram.

Aquecimento
Para chegar ao nosso destino final, Monte Alegre, havíamos feito antes duas paradas. Até São Paulo, as passagens foram pagas pela UFSC. Dormimos uma noite no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) de São Paulo, localizado no antigo Solar dos Andradas, em Santana. “Foi aqui que José Bonifácio escreveu o documento exigindo o “Fico” de D. Pedro”, contou o tenente Fernando Passarelli. Como manda a disciplina militar, acordamos de madrugada para seguir viagem. Dos 160 rondonistas escalados para o Pará, fizemos parte dos seletos 32 que voaram no jato Condor 99-A da Força Aérea. Ficou a curiosidade de passar cinco horas sentada no chão do barulhento e camuflado Hércules.

Um catarinense nos aguardava em Santarém, nosso “anjo” Huelinton Zanelato, o militar encarregado de zelar pela equipe durante todo o Projeto. No 8º Batalhão de Engenharia de Construção, circundado pela floresta de cacaueiros e saguis, a placa indicava as distâncias: 3922 km de São Paulo; 4630 de Florianópolis. Uma das camas dos triliches do alojamento feminino tinha uma etiqueta com meu nome e universidade. Sobre ela, uma carta de boas-vindas do Ministério da Defesa endereçada a Excelentíssima Sra. Luisa Frey.

Recebemos nosso kit Rondon – mochila, chapéu e quatro camisetas com os dizeres “Lição de vida e de cidadania” – e fomos ver a formatura dos oficiais. Um espetáculo de patriotismo, com hino nacional, discurso do coronel e até cobertura da TV Tapajós. Ali, os 160 rondonistas de verde assistimos aos jovens militares proclamando a Oração do Guerreiro de Selva, que termina: “Mas se defendendo esta brasileira Amazônia/ Tivermos que perecer, ó Deus/ Que façamos com dignidade/E mereçamos a vitória/ Selva!”.

Jantar, baile, banquete de café da manhã, solenidade de abertura do Projeto e palestra de sobrevivência na selva depois, finalmente partimos na manhã de domingo com o barco da Marinha.

- Patrulhamos 21 municípios, de Trombetas a Prainha. – disse o carioca Rubens Guanabara, 1º Sargento que navega no Amazonas há três anos.

- Isso dá quanto em km?

- São 330 mil km², para apenas 24 militares que se revezam.

Monte Alegre

Seis horas da manhã e alguém bate na porta. “ Vocês não querem ver o nascer do sol?”, perguntou o professor Clóvis. Na varanda ao redor da casa, sentamos no b a nc o de madeira, sentindo o ar que, a essa hora, ainda era fresco. Do alto do morro se vê o Gurupatuba, o sol se erguendo atrás do Amazonas no horizonte. Quando chega o fim de tarde, na árvore ali e m frente repousam dezenas de garças brancas, contrastando com o céu alaranjado. É exatamente neste ponto privilegiado que está localizado o Hotel da Comissão de Aeroportos da Região Amazônia (Comara), onde, junto com a outra equipe enviada à cidade, da Universidade d e Marília, passamos nossos 12 dias de Monte Alegre.

Nós éramos três estudantes do Jornalismo, dois da Medicina e uma do Serviço Social. Além do Professor Clóvis Geyer, o também jornalista Sérgio Mattos coordenou o grupo. Tínhamos de 26 de janeiro a 6 de fevereiro para desenvolver o que planejamos nas áreas de comunicação, meio-ambiente, tecnologia, produção e trabalho. Mas, para realizar tudo isso, dependíamos da prefeitura, que, responsável por o transporte, a alimentação e o alojamento dos rondonistas na cidade, determinaria conosco onde e como as ações seriam feitas. Com o prefeito, Jardel Vasconcelos (PMDB), não tivemos nenhum contato; lidamos apenas com a vice, Aldenora Coutinho.

Assim como a vista do hotel, a estrutura da cidade surpreendeu. O centro tem luz elétrica, água encanada e até internet na lan house da praça. “Pensei que fossemos para um município extremamente carente”, disse a colega de equipe Daiana Hackbarth, do Serviço Social. Mas somente 20 dos 60 mil habitantes moram na área urbana. Os outros 40 mil pinta-cuias - como são chamados os montalegrenses - vivem em cerca de 300 comunidades rurais, algumas bem afastadas. A área do município é de quase 22 mil km². São Paulo tem 1.523 km²; Florianópolis, 433 km².

Quase tudo o que havíamos previsto teve de ser readaptado a essa realidade e o primeiro dia foi só de planejamento. Tivemos reunião com as lideranças locais na Escola Municipal Orlando Costa, com direito ao hino cantado em coro: “Saberemos levar-te pra frente/ Monte Alegre, com força viril/ Confirmando o valor de tua gente/Que te quer integrado ao Brasil”. Depois, conseguimos negociar com a prefeitura para que atuássemos nas comunidades e não apenas na área central.Ali, nos arredores da igreja da matriz e da sorveteria dos sabores diferentes – buriti, cupuaçu, tapioca -, por onde passávamos logo se escutava um “Boa tarde” saindo de algum canto. Quando nos apresentávamos, todos já sabiam quem éramos. Isso porque não existe quem não ouça a rádio Mirante, onde, depois da reunião, nós rondonistas demos entrevista e fomos pauta nos dias que se seguiram.

Atuar para não entregar
Desde sua criação, em plena ditadura, o Projeto Rondon tem como objetivo aproximar universitários à realidade do país. Foi após a primeira operação - com duração de 28 dias, no interior da Amazônia – que os estudantes deram o nome em homenagem ao Marechal Cândido Rondon e voltaram com o lema “integrar para não entregar”. Nós queríamos atuar para não entregar e, no quinto dia de Projeto, conseguimos começar as ações.

A rua é de terra, mas a creche é novinha, recém-construída. Vinte pequenos rostos nos aguardam, sentados nas mesas dispostas em “U”. Ali, na Comunidade Planalto, a poucos minutos do centro, demos início à atividade “Realidade contada por desenhos”. A ideia era incentivar o registro de elementos do cotidiano como forma de valorizar a própria cultura. “Eu venho de muito longe, viajei três dias para chegar aqui. Não sei que frutas se comem, que bichos se veem por aqui”, provocamos as crianças. Logo os papéis se coloriram de giz de cera e, a partir dos desenhos, gravamos os depoimentos sobre botos, pirarucus e cupuaçus para, depois, produzir um audiovisual.

Enquanto isso, a equipe teve de se dividir, pois não contávamos com a presença de cerca de 50 professores que nos esperavam, ávidos por informação. No improviso, saiu uma roda de bate-papo e os docentes expuseram, com a esperança de que pudéssemos ajudar, suas dificuldades em sala de aula. A principal é a das turmas multiseriais. “Quando o bairro é pequeno e não tem uma escola pólo da região, o professor é responsável por uma classe com alunos de todas as séries, de três a 20 anos”, relatou uma das professoras.

Ao escrevermos a programação da semana na lousa, começou o burburinho. Criou-se grande expectativa em torno das palestras - sobre participação da família nas atividades escolares, como trabalhar com jovens, educação inclusiva e saúde - e das oficinas de rádio e jornal-mural. “O título do nosso jornal será Pinta-Cuia”, propôs uma das equipes de professores; “podemos fazer uma reportagem sobre a pesca predatória em Monte Alegre”, sugeriu outra.As ações chegaram a reunir mais de 90 professores, que superlotaram uma sala da Orlando Costa. Ao final de uma oficina, uma senhora nos agradeceu com os olhos brilhando. “Será que vocês não poderiam ir um dia à minha comunidade, Samaúma? Ela é bem carente”, pediu um professor de pele cabocla e olhos azuis. Depois, descobrimos que para chegar a Samaúma, se pega ônibus, barco e o último trecho é a pé. A vice-prefeita disse que seria inviável.

Na “Realidade contada por desenhos”, trabalhamos com 150 crianças. Nas manhãs seguintes àquela de Planalto, visitamos outras cinco comunidades. Na ribeirinha do Curitanfã, não há escolas, apenas a creche Cinderela. As casas são de palafita, algumas inacabadas. Sem paredes, o lar se resume a um tablado de madeira e um telhado sobre estacas. “A maioria das famílias é de pescadores, com uma renda média de R$250,00”, afirmou Rose Figueiredo, proprietária da única escola particular de Monte Alegre, que planejava conceder bolsas de estudos a 250 crianças do Curitanfã. Na Cinderela, não vimos desenhos de abóboras e princesas, mas de barcos, peixes e da bandeira do Pará.

No ginásio do bairro Curaxi, 47 crianças, de 2 a 16 anos, desenhavam no chão da quadra e, ao lado, 12 guardas mirins aprendiam a aplicar um teste de visão. A atividade fez parte da ação “Professor Nota 10”, que capacitou 200 professores e agentes de saúde. “Se algum problema for identificado, a criança deve ser colocada à frente da sala de aula e encaminhada ao médico”, explicava Alexandre Casagrande da Medicina. Basta apontar para o cartaz e perguntar que direção as perninhas da letra “E” indicam. “Faremos em todos os alunos quando voltarem das férias”, garantiu a professora Leonor Melo, da Escola Dátis Lima d’Oliva, localizada na comunidade na Colônia Agrícola do Norte do Pará (Canp).

Na Canp, começou nosso contato mais rico com a população, durante as visitas domiciliares para esclarecer dúvidas sobre programas do governo. Uma das paradas foi na casa de Xavier dos Santos de 71 anos. Passado o primeiro cômodo, onde panelas de alumínio brilhavam na parede, encontramos a senhora de cabelos grisalhos deitada sobre o lado esquerdo do corpo. Ele estava paralisado há dois dias, quando havia sofrido um AVC. “A banda que adormeceu num quer acordar e a que tá acordada num quer morrer”, brincou. Emocionou-se com a nossa presença e deixou escapar algumas lágrimas.

Nas visitas, descobrimos que a maioria das famílias recebia ou estava na fila para receber o Bolsa-Família. Elaboramos e disponibilizamos para a prefeitura uma cartilha com todos os serviços de direito dos cidadãos. Além disso, a partir das dúvidas da população, produzimos 15 programetes de rádio das séries “Doutor Sushi responde” e “Minuto Cidadão”: “Meu filho tem 15 anos, ele pode participar do pró-jovem?/ O que a gente faz quando a criança tem diarréia?”. O material ficou à disposição das emissoras locais para inserção na programação.

Nossas noites foram dedicadas às rádios Mirante FM e Comunitária Gurupatuba, à TV Ponta Negra e ao Jornal Tribuna da Calha Norte. Ministramos, estudantes e professores de Jornalismo, um seminário de atualização para 33 profissionais. Todos ali - do polêmico “Sibiê”, locutor do Patrulhão, ao sério Genival Cardoso, proprietário do Tribuna da Calha Norte - atuam como comunicadores, mas não possuem formação superior na área. “Eu tenho voz boa e tinha feito uma oficina de rádio. Daí a Mirante me contratou”, contou Nélio Magalhães. Ao menino Anderson, quatro anos, que acompanhava o pai jornalista, dei papel e caneta para distraí-lo.

- O que você desenhou aí?

- Uma moto.

- E o que é isso? – apontei para os vários círculos, um em cima do outro.

- O pai, a mãe e o filho na moto – respondeu. Há quase 3 mil motos em Monte Alegre e quanto mais gente andar na mesma, melhor. Tem gente que diz já ter visto sete pessoas sobre as duas rodas.

As reuniões renderam discussões em torno de técnicas de redação e ética. Rimos com os casos relatados, como o de Herto Miranda, que cobriu reportagens de bicicleta. O sucesso do seminário foi tanto que o ampliamos de três para seis encontros.

Hora de puxar o barco
Não poderíamos deixar Monte Alegre sem conhecer a Serra da Lua e suas inscrições rupestres de mais de 11 mil anos, uma das marcas mais antigas da presença humana na América. Em nossa última tarde, o guia foi Nelsi Sadeck, o engenheiro que, de tão interessado no Rondon, participou do seminário de comunicação e acabou nos “adotando”. Quando seu Nelsi ri, é impossível não rir também. “Boralá subir a pedra”, chamou. Círculos vermelhos e laranjas formam a lua; mais adiante, uma mulher grávida. Ainda subimos a Serra do Ererê e, a 284 m do chão, olhamos para os lados e tudo o que se via era água e o verde da planície Amazônica.

“O Rondon faz com que os alunos amadureçam e ampliem seu olhar cidadão”, costuma dizer o professor Sérgio. Nós voltamos contentes, mas com a sensação de impotência e frustração com o que poderia ter sido feito com mais tempo, de permanência e preparação. Naquela manhã de sexta-feira, a Marinha veio nos buscar. A bandeira do Brasil flamejava na proa do barco e Monte Alegre ficava cada vez mais distante na imensidão do Amazonas.